DISCURSO DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
Luciene Félix
Professora de
Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC
mitologia@esdc.com.br
“A tirania não é ato de força ou violência
de um homem ou de um bando de homens, mas nasce do desejo de servir e é o povo
que gera seu próprio infortúnio, cúmplice dos tiranos” (Marilena Chauí)
Com “Le Discours de la Servitude
Volontaire” (1552), compreendemos que a gênese da desumana opressão exercida
pelos poderosos aos menos favorecidos é atemporal e universal. Escrita como um
mero panfleto militante, aos 16 ou 18 anos pelo Pensador francês Etienne de La
Boétie, enquanto estudante de Direito, esmiúça os porquês que levam a multidão
a se permitir escravizar, cega e voluntariamente, a se dispor a servir.
Para La Boétie é o povo que se sujeita e se
degola; que, podendo escolher entre ser súdito ou ser livre, rejeita a
liberdade e aceita o jugo, consente tal mal e até o persegue. Como ocorre esse
processo é sobre o que o autor se debruça. Etienne esclarece que o tirano obtém
seu poder com a conivência do próprio povo subjugado e que a este bastaria
decidir não mais servir, recusar-se a sustentá-lo para que se tornasse livre.
São apontadas na obra, as três razões que culminam numa servidão voluntária.
Ao esmiuçar os meandros da servidão, revela
como está em nós enraizada a vontade de servir, apesar de existir em nossa alma
um germe de razão produtor da virtude (desde que alimentados pelos bons
costumes e bons exemplos) e de que a própria natureza é justa (pois para esta,
nenhum ser humano pode ser mantido em servidão). Os próprios animais prezam a
liberdade e se recusam a servir; quando o fazem é por imposição.
Afirma também haver três tipos de tiranos,
maus Príncipes: 1) os que o obtém o poder pela força das armas; 2) àqueles que
o herdam por sucessão da raça e 3) os que chegam ao poder por eleição do povo.
Os que o obtém pelo direito da guerra, agem como em terra conquistada; quanto
aos reis, nascidos e criados no seio da tirania, consideram os povos a eles
submetidos como servos hereditários, têm todo o Reino e seus súditos como extensão
de sua herança. Quanto ao eleito pelo povo, não nos enganemos: ao se ver alçado
a um posto tão elevado, tão alto – “lisonjeado por um não sei quê que chamam de
grandeza” – toma a firme resolução de não abrir mão da res pública. “Quase
sempre considera o poderio que lhe foi confiado pelo povo como se devesse ser
transmitido a seus filhos”. Para La Boétie, é essa idéia funesta que o faz
superar todos os outros tiranos em vícios de todo tipo e até em crueldades.
Para consolidar a nova tirania e aumentar a
servidão, afastam toda e qualquer idéia de liberdade presente no espírito do
povo. Em resumo, independente de como chegam ao poder, o modus operandi é quase
sempre o mesmo: os conquistadores vêem o povo como uma presa a ser dominada; os
sucessores como um rebanho que naturalmente lhes pertence e, por fim, os
eleitos tratam-no como bicho a ser domado.
La Boétie salienta que “Para que os homens,
enquanto neles resta vestígio de homem, se deixem sujeitar, é preciso uma das
duas coisas: que sejam forçados ou iludidos. Iludidos, eles também perdem a
liberdade; mas, então, menos freqüentemente pela sedução de outrem do que por
sua própria cegueira.” O povo cai em tão profundo esquecimento de seus direitos
que é quase impossível acordá-lo. Serve tão mansamente e de tão bom grado que,
ao observá-lo no torpor da servidão, se poderia dizer não que tenha perdido totalmente
a liberdade, mas que nunca a conheceu: “no início serve-se contra a vontade e à
força; mais tarde, acostuma-se, e os que vêm depois, nunca tendo conhecido a
liberdade, nem mesmo sabendo o que é, servem sem pesar e fazem voluntariamente
o que seus pais só haviam feito por imposição. Assim, os homens que nascem sob
o jugo, alimentados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se
em viver como nasceram; e como não pensam ter outros direitos nem outros bens
além dos que encontraram em sua entrada na vida, consideram como sua condição
natural a própria condição de seu nascimento”.
A primeira razão da servidão voluntária é o
HÁBITO. Por hábito, somos ensinados a servir, nos escravizamos. É o costume
que, à medida em que o tempo passa, nos leva não somente a engolir,
pacientemente, os sapos venenosos da escravidão, mas até mesmo a desejá-lo:
“pois por melhor que seja, o natural se perde se não é cultivado, enquanto o
hábito sempre nos conforma à sua maneira, apesar de nossas tendências naturais.”
Sendo assim, de se nascer servo e ser
criado na servidão decorre naturalmente a segunda razão da servidão voluntária:
a COVARDIA! Sob a tirania (mesmo que disfarçada), necessariamente os homens se
acovardam, se escravizam: “Os escravos não tem ardor nem constância no combate.
Só vão a ele como que obrigados, por assim dizer embotados, livrando-se de um
dever com dificuldade: não sentem queimar em seu coração o fogo sagrado da
liberdade, que faz enfrentar todos os perigos e desejar uma bela e gloriosa morte
que nos honra para sempre junto aos nossos semelhantes. Entre os homens livres,
ao contrário, é à discussão, polêmica, cada qual melhor, todos por um e cada um
por todos: sabem que colherão uma parte igual no infortúnio da derrota ou na
felicidade da vitória; mas os escravos, inteiramente sem coragem e vivacidade,
têm o coração baixo e mole, e são incapazes de qualquer grande ação. Disso bem
sabem os tiranos; assim, fazem todo o possível para torná-los sempre mais
fracos e covardes. Artimanha dos tiranos: bestializar seus súditos!”.
Também como instrumentos de alienação,
verdadeira mantenedora da tirania, a fim de adormecer o povo, súditos da
escravidão, disponibiliza-se todo e qualquer meio de distração: drogas,
tavernas, casas de prostituição, jogos, lutas públicas, fanfarras, enfim, toda
sorte de iscas para o entorpecimento: caras, bundas, sejam puro-sangues ou
égüinhas pocotós. Não há então necessidade de precaver-se contra o povo
ignorante e miserável, fácil e bestialmente entretido e domesticado com tolices
vãs: “Os tiranos romanos foram longe [na política do pão e circo], festejando
freqüentemente os homens das decúrias (homens do povo, agrupados de dez em dez,
e alimentados às custas do tesouro público), empanturrando essa gente
embrutecida e adulando-a por onde é mais fácil de prender, pelo prazer da boca.
Por isso, o mais instruído dentre eles não teria largado sua tigela de sopa
para recobrar a liberdade da República de Platão. Os tiranos distribuíam
amplamente o quarto de trigo, o sesteiro de vinho, o sestércio [bolsa-família
romana]; e então dava pena ouvir gritar: Viva o Rei! Os broncos não percebiam
que, recebendo tudo isso, apenas recobravam uma parte de seu próprio bem, e que
o tirano não teria podido dar-lhes a própria porção que recobravam se antes não
a tivesse tirado deles mesmos. O que hoje apanhava o sestércio, o que se
empanturrava no festim público abençoando Tibério e Nero por sua liberalidade,
no dia seguinte, ao ser obrigado a abandonar seus bens à cobiça, seus filhos à
luxuria, sua própria condição à crueldade desses magníficos imperadores ficavam
mudos como uma pedra e imóvel como um tronco”. Subserviente, iludida e
enfeitiçada é a massa de ignorantes! “A covardia é a mãe da crueldade”
(Montaigne). Nós mesmos, pacífico povo brasileiro, temos tradição,
orgulhamo-nos de nossa mansidão e vivemos um paradoxo pois a violência é efeito
(e não causa) da servidão voluntária.
Discorrendo sobre a terceira razão da
servidão voluntária, a PARTICIPAÇÃO NA TIRANIA, La Boétie aponta quem são os
interesseiros que se deixam seduzir pelo esplendor dos tesouros públicos sob a
guarda do tirano, os que, em conluio, garantem e asseguram seu poder: “são
sempre quatro ou cinco homens que o apóiam e que para ele sujeitam o país
inteiro. Sempre foi assim: cinco ou seis obtiveram o ouvido do tirano e por si
mesmos dele se aproximaram ou então, foram chamados para serem os cúmplices de
suas crueldades, os companheiros de seus prazeres, os complacentes para com
suas volúpias sujas e os sócios de suas rapinas. Tão bem esses seis domam seu
chefe que este se torna mau para com a sociedade, não só com suas próprias
maldades, mas também com as deles. Esses seis têm seiscentos que debaixo deles
domam e corrompem, como corromperam o tirano. Esses seiscentos mantêm sob sua
dependência seis mil, que dignificam, aos quais fazem dar o governo das
províncias ou o manejo dos dinheiros públicos, para que favoreçam sua avareza e
crueldade, que as mantenham ou as exerçam no momento oportuno e, aliás, façam
tanto mal que só possam se manter sob sua própria tutela e instar-se das leis e
de suas penas através de sua proteção. Grande é a série que vêm depois deles. E
quem quiser seguir o rastro não verá os seis mil mas cem mil, milhões que por
essa via se agarram ao tirano, formando uma corrente ininterrupta que sobe até
ele. Daí procedia o aumento do poder do senado sob Júlio César, o
estabelecimento de novas funções, a escolha para os cargos – não para
reorganizar a justiça, mas sim para dar novos sustentáculos à tirania. Em suma,
pelos ganhos e parcelas de ganhos que se obtêm com os tiranos chega-se ao ponto
em que, afinal, aqueles a quem a tirania é proveitosa são em número quase tão
grande quanto aqueles para quem a liberdade seria útil. Que condição é mais
miserável que a de viver assim, nada tendo de seu e recebendo de um outro sua
satisfação, sua liberdade, seu corpo e sua vida! Mas eles querem servir para
amealhar bens”.
Com isso vislumbra-se a rede da servidão.
Frágil por natureza, de onde, a todo instante despontam os escândalos pois, o
tirano não tem amigos, não ama nem é amado: “O que torna um amigo seguro do
outro é o conhecimento de sua integridade. Entre os maus, quando se juntam, há
uma conspiração, não uma sociedade; Eles não se entre-apóiam mas se
entre-temem. São cúmplices”.
Na ilusão de que estamos livres,
fundamentam-se os três caminhos que nos levam a servidão (hábito, covardia e
participação). Não estamos. Mas podemos vir a ser. Pois, quanto a resgatar a
Liberdade, nos invade de esperanças Aristóteles:
“A Justiça [também] é um hábito que nunca
morre”.
FONTE: http://www.esdc.com.br/CSF/artigo_2007_11_Boetie.htm
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